19 Jun Geração Z: uma geração ansiosa?
Como a primeira geração a crescer na era da conectividade digital ubíqua, a Geração Z tem enfrentado um aumento nos desafios de saúde mental que exigem a nossa atenção urgente. The Anxious Generation (2024) escrito pelo psicólogo social Jonathan Haidt argumenta que o declínio do brincar na infância e o aumento do uso de smartphones entre os adolescentes são as fontes do aumento do sofrimento psicológico na Geração Z e está na base da informação partilhada neste artigo.
Perdoe-me o leitor pelo uso abusivo da palavra smartphone ao longo de todo o texto… mas é deliberado e pretende espelhar a presença proporcional deste equipamento no tempo actual.
Os smartphones estão por trás de um aumento preocupante de problemas de saúde mental na infância e adolescência
O impacto que os smartphones e as redes sociais têm tido no bem-estar dos jovens de hoje prendem-se sobretudo pela privação social, privação de sono, fragmentação da atenção e dependência.
No início dos anos 2000, o panorama da saúde mental entre pré-adolescentes e adolescentes parecia relativamente estável, sem indicações claras de uma crise iminente. Mas a década seguinte trouxe uma mudança dramática: os problemas de saúde mental entre crianças e adolescentes da Geração Z começaram a aumentar a um ritmo alarmante.
Para colocar este fenómeno em perspetiva, consideremos os resultados de uma investigação nacional sobre o uso de drogas e saúde levada a cabo nos EUA. Os dados revelaram um aumento impressionante de 145% dos casos relatados de episódios depressivos entre raparigas desde 2012. Para os rapazes, o aumento é ainda mais acentuado, com um aumento de 161% dos casos notificados de episódios depressivos no mesmo período. O impacto vai além dos sintomas autorrelatados, com estudantes universitários experienciando um aumento de 134% na presença de ansiedade, um aumento de 106% na identificação de depressão, um aumento de 72% na perturbação de hiperatividade e défice de atenção e um aumento de 57% nos diagnósticos de perturbação bipolar desde 2012. Este aumento nos desafios de saúde mental está, com exceção de alguns jovens millennials, em grande parte confinado à demografia da Geração Z.
As estatísticas só arranham a superfície de um grave problema que vivemos atualmente. Entre as raparigas, houve um aumento de 188% nas visitas ao centro de saúde por automutilação desde 2010 e um aumento de 167% nas taxas de suicídio. Para os rapazes, os números também são muito preocupantes, com um aumento de 48% nas visitas ao centro de saúde relacionadas à automutilação e um aumento de 91% nas taxas de suicídio.
O que explica esta mudança dramática no cenário da saúde mental da Geração Z? A resposta pode estar, em parte, na adoção generalizada de smartphones e nas correspondentes mudanças no tecido social da adolescência. Os smartphones, introduzidos pela primeira vez em 2007 e amplamente adotados na década de 2010, têm influenciado profundamente a forma como os jovens interagem, comunicam e se envolvem com o mundo ao seu redor.
Estudos mostraram que pré-adolescentes e adolescentes que acederam à internet nos anos 1990 e início dos anos 2000 eram, em média, ligeiramente mais felizes durante a adolescência do que seus antecessores da geração X. No entanto, esta tendência inverteu-se drasticamente com a adoção generalizada de smartphones, o que permitiu que os adolescentes estivessem conectados e online constantemente, onde quer que estivessem. Em 2016, 79% dos adolescentes possuíam um smartphone, assim como 28% das crianças de 8 a 12 anos. De forma alarmante, um relatório do Pew de 2022 (Pew Research Center é um centro de investigação, localizado em Washington, D.C., que informa sobre questões, atitudes e tendências que estão a influenciar os EUA e o Mundo) indica que 46% dos adolescentes se descrevem como estando online “quase constantemente”.
Esta mudança no panorama social da infância e adolescência tem tido um impacto significativo na saúde mental da Geração Z, à medida que as vidas dos jovens passaram a mover-se cada vez mais online através do acesso constante às redes sociais, videojogos e outras atividades na internet. A primeira geração de adolescentes nos Estados Unidos a passar pela adolescência com este nível de conectividade tornou-se mais ansiosa, deprimida e suicida do que qualquer geração registada antes. Esta tendência preocupante não se limita aos EUA; estudos no Canadá, no Reino Unido e nos países nórdicos relataram resultados semelhantes, sugerindo que este é um fenómeno global.
Embora outros factores, como a ansiedade em torno de questões globais como as mudanças climáticas, também possam contribuir para os resultados da saúde mental da Geração Z, a omnipresença do uso de smartphones e as mudanças correspondentes na dinâmica social parecem ser os principais impulsionadores por trás desta onda de doenças mentais. À medida que lidamos com as implicações desta crise, fica claro que uma compreensão mais profunda da complexa interação entre tecnologia, interação social e desenvolvimento de adolescentes é necessária para desenvolver estratégias eficazes para apoiar a saúde mental dos nossos jovens.
As infâncias de “brincadeiras vivas”, e não baseadas num smartphone, promovem um desenvolvimento saudável
Por que a introdução do smartphone foi tão prejudicial para a saúde mental de crianças e adolescentes? A resposta pode estar não apenas no que o smartphone lhes dá acesso – redes sociais, filtros de fotos, jogos viciantes e muito mais – mas no que o tempo gasto num smartphone lhes rouba. Especificamente, a introdução do smartphone “contaminou” a infância tradicional e saudável baseada em brincadeiras, com consequências de longo prazo para o bem-estar mental da Geração Z.
Os seres humanos têm uma infância mais longa do que qualquer outro mamífero, e há uma boa razão para isso. O ritmo mais lento do desenvolvimento humano permite que o cérebro passe por um processo crítico de poda sináptica, onde as conexões que são usadas com frequência são fortalecidas, enquanto as que são usadas raramente desaparecem. Este processo de formação de padrões e hábitos é evolutivamente concebido para ocorrer através de três áreas-chave: brincadeira livre, conexão e aprendizagem social. Os smartphones atraíram as crianças para um mundo virtual, onde é um desafio explorar plenamente estas três funcionalidades críticas.
Através de brincadeiras não estruturadas e não dirigidas, as crianças aprendem a cooperar umas com as outras, avaliar riscos, formar amizades e exercitar a imaginação. Uma infância digital, ao contrário, é necessariamente estruturada – o conteúdo e as interações foram desenhados por equipas de especialistas. Este ambiente virtual estruturado não pode oferecer as mesmas oportunidades de desenvolvimento que o mundo físico da brincadeira livre.
A arte de nos conectarmos com os outros, é outro aspeto crucial do desenvolvimento infantil. Desde tenra idade, as crianças aprendem a ler pistas emocionais, revezam-se e constroem laços sociais através de interações síncronas com os seus cuidadores e pares. Estas interações são vitais para o desenvolvimento da autorregulação emocional e das competências sociais. Em 2014, um terço das meninas pré-adolescentes relatou passar cerca de 20 horas por semana nas redes sociais, potencialmente perdendo oportunidades valiosas de conexão.
A aprendizagem social, o processo pelo qual as crianças emulam comportamentos eficazes e estratégias sociais a partir de modelos, também é impactada pelo aumento dos smartphones e das redes sociais. Embora as redes sociais não tirem as oportunidades de aprendizagem social das crianças e adolescentes, turbinam-nas. As crianças agora podem identificar comportamentos a serem imitados por meio de sistemas métricos, como o número de gostos e a interação nas publicações. Mas os modelos que escolhem imitar podem exibir comportamentos ou incorporar valores que são inadequados, ou que estabelecem padrões impossíveis para as crianças viverem, em vez de identificarem organicamente bons modelos nas suas comunidades.
Nas últimas décadas, os pais têm-se concentrado em proteger as crianças dos riscos físicos percecionados, como os automóveis ou os agressores sexuais. Mas que tal protege-los de smartphones e redes sociais?
A criação de anticorpos nas crianças ao mundo físico pode ser contraproducente, levando a uma diminuição da resiliência, independência e tempo de brincadeira sem supervisão. As brincadeiras com algum risco são necessárias para que as crianças aprendam a resolver problemas e criem confiança e sentido de autoeficácia. Lidar com o tédio e a frustração regularmente também é fundamental para se tornarem adultos emocionalmente saudáveis. À luz disto, colocar uma criança numa bolha de satisfação e segurança não é bom para o seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, não conseguimos proteger adequadamente as crianças dos riscos colocados pelo acesso constante às redes sociais, filtros de fotos e jogos viciantes.
A introdução do smartphone alterou fundamentalmente a natureza da infância, privando as crianças das experiências críticas de brincadeira livre, conexão e aprendizagem social orgânica. E esta mudança tem tido consequências negativas para a saúde mental da Geração Z, como evidencia o aumento alarmante de casos relatados de depressão, ansiedade e automutilação.
Enfrentar esta crise requer uma compreensão mais profunda da relação entre tecnologia, dinâmica social e desenvolvimento infantil.
Da privação de sono à fragmentação da atenção, o uso de smartphones afecta perigosamente a saúde das crianças
Não há dúvida de que a rápida mudança de telefones para smartphones no final dos anos 2000 e início dos anos 2010 transformou drasticamente a natureza da infância.
Primeiro? Privação social. Como sabemos, as interações sociais presenciais são fundamentais para o desenvolvimento social saudável de uma criança. Mas desde 2009 tem caído acentuadamente o tempo que as crianças passam a interagir com amigos presencialmente. Mesmo quando crianças e adolescentes passam tempo juntos, cada vez mais o fazem com um smartphone na mão, diminuindo a qualidade das suas interações. Existem muitos convívios sociais onde se janta em restaurantes, dança em discotecas, canta em festivais de música e caminha na passadeira do ginásio com um smartphone nas mãos criando conteúdos de publicação para os stories em tempo real. Esta tendência estende-se também à vida familiar, uma vez que os pais também se distraem facilmente com os seus smartphones. Num estudo com crianças dos 6 aos 12 anos, 62% relatou que os seus pais estavam “distraídos” quando tentavam falar com eles, sendo a principal razão o uso de smartphones. Estaremos numa relação mais íntima com os nossos smartphones do que com os que nos rodeiam?
O segundo efeito adverso dos smartphones é a privação de sono. Os ritmos biológicos mudam durante a adolescência. Desde sempre, os pais têm lutado para acordar os seus adolescentes ou pré-adolescentes a tempo para a escola. Os smartphones exacerbaram este problema, já que o uso noturno destes equipamentos é conhecido por ser perturbador para o sono. Uma revisão de 36 estudos concluiu que há uma clara correlação entre o uso de smartphones e a privação de sono entre os adolescentes. Esta privação de sono está associada a níveis mais elevados de depressão, ansiedade, agressividade e incapacidade no controlo de impulsos.
Em terceiro lugar, temos a fragmentação da atenção. Um adolescente recebe em média onze notificações por hora de vigília, com “utilizadores mais dedicados” este número pode subir para uma notificação por minuto a cada hora acordada. Os smartphones e as redes sociais são projetados para desviar a atenção do utilizador de tudo o que ele está a fazer, fornecendo um fluxo constante de notificações e os acessos de dopamina que o acompanham. Esta fragmentação da atenção pode comprometer a capacidade de um indivíduo se concentrar profundamente numa tarefa ou de se envolver em modos de pensamento mais lentos e reflexivos. Até mesmo a mera presença de um telemóvel na sala mostrou impedir a capacidade de um adolescente se concentrar numa tarefa! Este acesso contínuo a smartphones durante um período crucial do desenvolvimento cerebral pode significar que a capacidade de foco e atenção de alguns utilizadores nunca amadurecerá totalmente, como evidencia a tendência crescente dos diagnósticos de PHDA. Não surpreendentemente, estudos mostram que indivíduos com PHDA passam muitas vezes quantidades acima da média de tempo on-line nos seus smartphones.
Por fim, vamos discutir o vício. Os smartphones e as aplicações que neles vivem são deliberadamente concebidos para serem viciantes. Pré-adolescentes e adolescentes, com os seus cérebros mais plásticos, são particularmente vulneráveis a desenvolver estes vícios. Os smartphones e as redes sociais empregam técnicas comportamentais avançadas para criar hábitos compulsivos nos utilizadores – a ativação de gatilhos externos, como notificações, é combinada com a promessa de recompensas variáveis, como gostos, comentários e mensagens. Esta variabilidade, na verdade, torna a experiência mais viciante, pois os utilizadores veem-se incapazes de resistir ao impulso de procurar estas recompensas, mesmo na ausência do gatilho inicial. A corrida à dopamina que os utilizadores experimentam é contrariada pelos sintomas de abstinência, incluindo disforia, irritabilidade, insónia e ansiedade, que ocorrem quando a adição não pode ser satisfeita.
Em conjunto, estes quatro principais danos infligidos pelos smartphones – privação social, privação de sono, fragmentação da atenção e dependência – prepararam o terreno para o aumento de perturbações ao nível da saúde mental que estamos a assistir entre crianças e adolescentes.
Os impactos negativos dos smartphones e das redes sociais podem ser contestados
Muitos adultos que cuidam de crianças e adolescentes estão bem cientes do impacto deletério que o uso de smartphones está a ter no bem-estar mental e social deste grupo. A questão passa então a ser: O que pode ser feito para resolver esta questão premente e apoiar o desenvolvimento saudável dos jovens na era digital?
Para alcançar uma transformação duradoura e positiva, é necessário que ocorram mudanças estruturais a nível social. Não podemos superproteger as crianças e jovens no mundo físico, enquanto as desprotegemos no mundo virtual. Os governos devem tomar medidas proativas para resolver este desequilíbrio, como a aprovação de leis que obriguem as empresas on-line, incluindo redes sociais e plataformas de jogos, a tratar os usuários menores de idade com um dever extra de cuidado. A idade da “idade adulta na internet” deve ser aumentada para 16 anos, reconhecendo as vulnerabilidades únicas dos adolescentes. Ao mesmo tempo, os governos devem instituir mais oportunidades de brincadeira livre e recesso no sistema escolar, para que os pais possam permitir que seus filhos se envolvam em brincadeiras sem supervisão.
As empresas de tecnologia, que demonstraram notável engenho na criação de produtos formadores de hábitos, devem agora direcionar esse mesmo nível de inovação para garantir a segurança e o bem-estar das crianças e adolescentes online. Tal poderia implicar o desenvolvimento de melhores métodos de verificação da idade e opções muito mais rigorosas para o controlo parental dos conteúdos digitais e da utilização dos dispositivos.
Embora a mudança estrutural seja necessária, ela pode demorar a chegar. Entretanto, existem medidas que os pais e cuidadores podem tomar para proteger as crianças e promover o desenvolvimento saudável.
Essencialmente, as crianças de todas as idades precisam de menos, e melhor, experiência com ecrãs – e mais, e melhor, experiência no mundo real. Assim, dos zero aos cinco anos, os pais podem limitar o tempo de ecrã e maximizar as oportunidades de brincadeira livre e não estruturada. Embora as brincadeiras entre pais e filhos sejam uma experiência maravilhosa de conexão e proporcionem desenvolvimento educacional, as crianças também precisam de se envolver em brincadeiras com outras crianças, idealmente de uma ampla gama de idades, para desenvolver habilidades sociais e de resolução de problemas essenciais.
À medida que as crianças entram na escola primária, os pais podem incentivar a independência, como ir a pé para a escola ou às lojas locais por conta própria. O tempo pós-escolar deve ser deixado maioritariamente livre para brincadeiras não estruturadas, com atividades estruturadas limitadas. As famílias de uma mesma área de residência podem colaborar para criar espaços seguros para as crianças brincarem livremente, respeitando limites estritos de tempo de ecrã – por exemplo, não mais de duas horas por dia – e utilizando controlos parentais rigorosos e filtros de conteúdo em todos os dispositivos da casa.
Para pré-adolescentes e adolescentes, o foco deve ser o desenvolvimento de competência e autoeficácia através do domínio de modos de transporte, como a bicicleta ou o uso de transportes públicos; assumir mais responsabilidades em casa, como cozinhar refeições; e envolver-se no mundo real através de empregos a tempo parcial, viagens de acampamento com amigos e outras experiências independentes. Por volta dos 16 anos, os pais podem considerar a transição dos seus filhos para um smartphone e contas ativas de redes sociais – mas devem manter as regras familiares sobre o uso de ecrãs e monitorizar sinais de dependência e sofrimento mental ou emocional.
No mínimo, a independência e a competência que as crianças são incentivadas a desenvolver no mundo real devem corresponder – se não superar – a autonomia que lhes é dada no mundo virtual. Ao encontrar esse equilíbrio, pais e cuidadores podem mitigar os impactos nocivos do uso excessivo de smartphones e ajudar os seus filhos a tornarem-se indivíduos mais saudáveis e felizes.
Vera Lisa Barroso, Psicoterapeuta na Pessoalmente ®
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