08 Dec Fundações (inconscientes) das formas como nos relacionamos – Trauma pré-verbal e de vinculação
“As relações são todas iguais, não quero mais ninguém!”
“Não volto a colocar-me num sítio de vulnerabilidade”
“Só tenho relações tóxicas e negativas”
E se a forma como nos relacionamos e nos ligamos às pessoas da nossa vida estivessem relacionadas com experiências traumáticas vividas durante a fase pré-verbal do desenvolvimento? Nos primeiros anos de vida (2 a 3 anos de idade), antes de um desenvolvimentos da linguagem como meio de organização e expressão de vivências, experiências de negligência, abuso, separação prolongada dos cuidadores, ou qualquer situação que ameace o bem-estar físico ou emocional do bebé, podem criar estas memórias implícitas, em grande parte inconscientes, em cada um de nós. Esta configuração, também torna este tipo de trauma muito mais difícil de identificar e/ou tratar porque é, num momento inicial, muito vago e nebuloso, não estando claramente ligado internamente, consciente ou sequer verbalizado com sentido…
Em consulta, ouvimos os protetores emocionais dos nossos clientes, interagimos com esses mesmos protetores, mas sentimos a ferida – a experiência inconsciente de dor, que está por baixo e é muito diferente. “Imagino que tenha feridas realmente profundas e dolorosas por dentro, e eu confio que, com o tempo, juntos seremos capazes de ir lá de uma maneira segura. Não vamos fazer nada agora, mas acredito que existam lugares dentro de si que carregam uma dor profunda e mágoa em torno da conexão e perda”. A primeira etapa do trabalho é obter permissão destes mesmos protectores (sintomas) que se materalizam das mais diversas vias, desde pedidos relacionados com dependência de álcool, compulsões, depressão, ataques de pânico, entorpecimento, dissociação… Todos estes quadros são exemplos de protectores emocionais. Apesar de serem sintomas que causam problemas na nossa vida, a sua intenção principal é defender-nos da dor.
Como nos relembra Frank Anderson, o trauma bloqueia o amor e a conexão, bloqueia quem somos genuinamente, tornando-nos muito diferente daquela que seria a nossa essência. E é o amor e a conexão que curam o trauma. Mas este é um ciclo complicado, porque exatamente aquilo que precisamos aceder dentro dos nossos clientes é exatamente aquilo que eles não têm acesso porque está bloqueado como resultado do trauma. “A agência de cura” não é acessível por muitos e muitos anos, por causa do trauma pré-verbal não reconhecido que existe dentro dos seus sistemas.
Sobre os relacionamentos, podemos ouvir descrições de desconfiança instintiva em relação ao parceiro, dificuldade na entrega emocional e a vulnerabilidade; evitamento ou mesmo medo da intimidade (como forma de proteger possíveis rejeições); procura constante de validação externa dos seus relacionamentos (a partir de partes mais carentes e/ou dependentes); comportamentos possessivos e/ ou dificuldade em lidar com a distância emocional normal no relacionamento, (conduzidos por partes com medo do abandono); sistema nervoso em estado de alerta constante, com explosões emocionais continuadas ou dificuldade em regular emoções durante conflitos; repetição de padrões familiares disfuncionais; dificuldade em dizer “não” ou em reconhecer as suas próprias necessidades, ou, pelo contrário, estabelecer barreiras excessivamente rígidas para evitar sofrer…
É por isso que falar para as camadas que estão por baixo destes protetores é tão importante. O que sabemos é que, nessa dinâmica, precisamos ser capazes de nomear esta polaridade imediata, onde a conexão externa com o psicoterapeuta assume um espaço reservado para a promoção da conexão interna.
Portanto, numa primeira fase, o foco principal, é conhecer os elementos de proteção, permitindo que o cliente desenvolva uma relação com as suas defesas, e eventualmente ao longo do tempo, essa diferenciação e conexão interna alivie a exigência de todas as suas necessidades infantis (não atendidas) para os relacionamentos com outros adultos.
Numa segunda fase, o cliente tem energia suficiente para querer operar de forma independente e autossuficiente, para talvez ir viver sozinho pela primeira vez na sua vida. Às vezes até dizem “Eu até gosto de estar sozinho, não tenho de responder a ninguém. Ninguém me incomoda.” Estas iniciativas de diferenciação podem inclusivamente gerar algum conforto e estagnação, em virtude do plácido evitamento que dá lugar – “Para mim chega. Não quero mais relacionamentos”.
Será, então, hora de trabalharmos estas feridas de vinculação… a menina que nunca se sentiu amada pela mãe ou o menino que nunca se sentiu amado pelo pai, ou vice-versa. A terceira fase é de cura para que as pessoas tenham um novo desejo e capacidade de intimidade, que pode ou não incluir o/a parceiro/a, ou uma outra pessoa. Desde que a escolha seja feita em consciência e clareza, a partir de um lugar “limpo”. Porque só assim é uma escolha, e não uma imposição disposta numa necessidade desesperada.
A qualidade dos cuidados parentais nos primeiros dois anos de vida promove um estilo de vinculação na criança que será modelo para relacionamentos futuros na idade adulta (Bessel van der Kolk e Janina Fisher, Healing Fragmented Selves of Trauma Survivors). As primeiras experiências de ligação são mais tarde lembradas, não como memória visual ou verbal, mas como memória emocional implícita, sentida na segurança, confiança, capacidade de tolerância e autorregulação. Os nossos cuidadores podem conduzir a nossa autorregulação saudável e vinculação segura.
Frank Anderson faz uma distinção muito interessante entre a teoria da vinculação e os tradicionais estilos de vinculação (seguro, evitante, ansioso e desorganizado), afirmando que todos nós temos um bocadinho de todos estes estilos nos relacionamentos em que estamos. E que ao pensarmos em cada uma das nossas relações percebemos que a forma como estamos conectados, não é consistente. Não é um único estilo. É uma complexidade (que muda e evolui).
Para Frank Anderson, a ideia de um único estilo de vinculação é imprecisa e inautêntica porque segundo este autor nós temos muito mais do que quatro tipos diferentes de conexão com todas as pessoas na nossa vida. Assim, os nossos estilos de vinculação mudam, evoluem e podem crescer, ou não existir, dependendo do trabalho psicológico que fazemos.
Então, quando trabalhamos com trauma de vinculação, temos de assegurar constantemente uma conexão externa saudável, mas simultaneamente reparar a relação interna/interior que foi separada, como resultado do trauma. O trauma viola as relações internas. Quando vivenciamos um trauma, o nosso “Self” é protegido e preservado (não passa pelo trauma), mas as nossas partes passam a transportar as marcas nos seus escudos. É por esta razão que, na grande, grande maioria das vezes, as partes que odeiam relacionamentos estão a proteger outras que estão desesperadas por uma conexão. É muito importante ter compaixão pela complexidade destas dicotomias e pelo papel de cada elemento nessa dinâmica. “Onde aprendeu a proteger-se dessa maneira?”
Talvez grande parte das nossas decisões relacionais adultas em torno da intimidade estejam enraizadas na nossa vinculação. Segundo Frank Anderson, a atração ( e as pessoas que escolhemos nas nossas vidas) resulta mesmo do nosso trauma de vinculação. Somos atraídos por pessoas que possam curar as nossas feridas relacionais. O problema é que, sendo este um movimento inconsciente, tendemos a escolher “a pessoa errada perfeita” porque escolhemos alguém que tem igual vulnerabilidade, com eventuais maneiras opostas de se proteger. Logo, estas pessoas tendem exatamente a recriar as feridas das quais estamos a tentar curar-nos. Quantas vezes já ouviu: “Por que razão continuo a sentir atração por pessoas indisponíveis?” Talvez esteja à procura de um modelo atualizado do seu pai ou mãe, e continua a recriar esta dinâmica…
Absorvemos a energia do nosso ambiente e das nossas experiências. Todos os que já foram vítimas internalizaram também a energia do agressor e nós não podemos realmente curar a vítima sem reconhecer o agressor que existe dentro de si. “De onde vem a energia dessa forma de se proteger? E quanto dessa energia não é sua e não pertence ao seu sistema?” Porque, um trauma é a energia que absorvemos da situação, não é originalmente nossa.
Anderson chama ainda a atenção para algumas condições médicas crónicas que podem resultar de trauma pré-verbal. Qualquer experiência impactante que não possa ser expressa através de palavras, será expressa de outras formas… qualquer outra modalidade sensorial em que o impacto seja codificado. Às vezes é visual, como se houvesse cor, tonalidades, impressão, outras vezes é sonora, física ou emocional… porque é assim que o trauma é codificado num cérebro ainda pouco desenvolvido. É fundamental que a psicoterapia ofereça e mantenha uma presença sólida, assegurando a evolução da transformação das diferentes partes do sistema e a cura que é necessária, bem como o acolhimento de todas as informações que vão aparecendo de maneiras tão distintas.
A maioria das partes pré-verbais carregam igualmente feridas de vergonha. Criam-se feridas sobretudo por causa da distorção da responsabilidade. Quando somos deixados no berço a chorar, quando não somos alimentados, quando nos batem, quando nos gritam e quando os agressores não assumem a responsabilidade dos seus atos, nós, como crianças, internalizamos isso como responsabilidade e culpa nossa. E existem diferentes ciclos de vergonha, “Eu sou mau, eu estou errado. A culpa é minha“.
Por fim, a maneira de curar estas feridas é, na verdade, a mesma para feridas verbais. Existem certos componentes-chave que precisam acontecer para que a cicatrização emocional esteja alinhada com a religação neuronal e reconsolidação da memória:
1) a partilha da experiência. E a partilha não vai ser em palavras, será em diferentes formas de expressão, como especificado atrás;
2) uma vez concluída a partilha, é necessária uma experiência corretiva. Isso acontece internamente ou relacionalmente, dependendo da circunstância. Com trauma pré-verbal é, muitas vezes, uma combinação das duas. Cliente e psicoterapeuta oferecem juntos (experiência correctiva relacional), aquilo que o cliente precisou/ quis e nunca conseguiu (experiência correctiva interna).
3) depois da experiência correctiva, a libertação é possível. E essa libertação acontece de todas as formas: movimento, expressão verbal, choro, palavras, imagens, história… Porque no fim, ninguém precisa de carregar dentro de si crenças que não lhe pertencem, necessidades que estão reparadas e dinâmicas psicológicas que estão identificadas e validadas.
Traumas pré-verbais, de vinculação, podem trazer desafios significativos para as relações amorosas, mas não são uma sentença definitiva. Com autoconsciência e intervenção adequada, é possível construir vínculos seguros e satisfatórios, promovendo a cura e o crescimento pessoal.
Vera Lisa Barroso, Psicoterapeuta na Pessoalmente ®
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