01 Jun Dissociação: quando o corpo vivencia e a mente voa
O fenómeno psicológico da dissociação
Certamente já deu por si a conduzir para casa e sentir que a sua mente se desconectou – viajou para sítios tão longínquos que nem se apercebeu como chegou a casa? Ou já se envolveu de tal maneira num filme que sentiu como se estivesse ali ao lado das personagens em vez de estar apenas sentado no sofá?
Se qualquer uma destas descrições lhe soa a familiar, então experimentou um pequeno momento de dissociação. A dissociação é geralmente um mecanismo que os nossos cérebros usam para nos ajudar a lidar com situações e traumas emocionalmente avassaladores. Mas vem com um porém: é fácil habituar-nos a dissociar, com os nossos cérebros constantemente a “verificar” e evitar situações emocionalmente desafiantes.
Se quisermos começar a viver de forma mais honesta e plena no presente, devemos enfrentar o fenómeno da dissociação e entender por que é que ele se desenvolve em primeiro lugar.
A dissociação funciona como um mecanismo de sobrevivência, mas pode ser uma faca de dois gumes
Imagine o seguinte. Está numa noite calma, a conduzir no seu carro para casa depois de terminar um treino intenso no ginásio. Está prestes a avançar através de uma luz verde num cruzamento movimentado, mas alguém passou o sinal vermelho e vai bater diretamente no lado direito do seu carro. Entende o que vai acontecer antes que isso aconteça e, de repente, parece que não é mais a pessoa no volante. Na verdade, parece que não está dentro do seu próprio corpo – é como se estivesse a assistir ao acidente acontecer em vez de participar nele.
O termo para aquilo que está a experimentar nesta situação chama-se dissociação e é uma reação comum e normal a situações traumáticas e altamente stressantes. Quando dissociamos, os nossos cérebros permitem-nos “desconectar” emocionalmente de uma situação para que possamos agir com calma e frieza, em vez de entrar em pânico.
A dissociação é inegavelmente útil durante eventos traumáticos. No entanto, tende a ter impactos duradouros que são tudo menos úteis depois que os eventos terminam. Numa situação em que dissociou, o seu cérebro potencialmente estabeleceu uma conexão entre algo traumático e algo que pode parecer completamente benigno para todos os outros. E isso significa que pode ser “lançado” num estado de dissociação em momentos completamente inesperados.
Para ilustrar isto, considere uma mulher imaginária chamada Beatriz, que está a ler um livro enquanto espera a chegada do seu comboio. Ela está tão envolvida na leitura que o apito alto do comboio que chega faz com que Beatriz salte do banco. De repente, o seu coração está a bater de forma acelerada, ela sente vontade de correr e até percebe um cheiro inexplicável de cloro.
A Beatriz não sabe, mas o seu cérebro catapultou-a emocionalmente para um momento da sua infância, quando viu a sua irmã mais nova saltar para a estrada e ser atropelada por um carro, quando caminhavam para casa, vindas da natação.
Como resultado da reação dissociativa de Beatriz, ela começa a sentir-se inexplicavelmente cansada, paranoica e com medo o resto do dia. Mas isso é apenas uma pequena reação dissociativa. As pessoas que vivem episódios traumáticos mais extremos também experimentarão reações dissociativas muito mais extremas.
O trauma interrompe os processos de armazenamento de memória do cérebro e causa reações dissociativas
O trauma não cria apenas cicatrizes emocionais duradouras – também tem um efeito dramático no próprio cérebro, particularmente quando se trata de hormonas e áreas do cérebro relacionadas com a memória.
Vamos ver então como se formam as memórias em circunstâncias normais. Primeiro, os seus cinco sentidos enviam informações para a amígdala, o centro de processamento emocional do seu cérebro. Depois, após “avaliar” o significado emocional da informação que recebe, a amígdala passa a sua avaliação para o hipocampo, que ordena a informação de acordo com a sua importância emocional e integra-a com outras memórias.
Porém, em situações emocionais, ou traumáticas, avassaladoras este processo desfaz-se. O trauma interrompe os processos de armazenamento da memória e causa reações dissociativas. Quando a amígdala regista um evento como tendo extremo significado emocional, o hipocampo é incapaz de organizar utilmente a informação ou integrá-la com o resto das suas memórias. Essencialmente, isso significa que as memórias traumáticas muitas vezes existem como imagens sensoriais isoladas ou sensações corporais.
E estas não são as únicas diferenças entre memórias traumáticas, mediadas pela amígdala, e memórias regulares. As memórias mediadas pela amígdala podem não estar conectadas às áreas de processamento de linguagem do cérebro, o que significa que não podemos usar a linguagem para dar sentido a essas experiências. Além disso, essas memórias são muito mais fáceis de aceder do que as que foram moduladas pelo hipocampo.
Para ilustrar os efeitos negativos deste processo único de criação de memória, vejamos o caso de Joana (nome fictício). Joana era uma académica altamente inteligente que trabalhava na área da investigação. Mas, apesar do sucesso, Joana tinha um problema que achava estranho, não se lembrava de nada da sua infância. A única lembrança viva que tinha da sua infância era da sua mãe ter que largar o seu cão de estimação, quando Joana tinha 12 anos.
As enormes lacunas de memória de Joana eram um produto da sua história difícil: uma infância cheia de horrores, incluindo abuso físico e sexual por ambos os pais. A jovem Joana tinha aprendido a “ir para outro lugar” enquanto era abusada – por outras palavras, tinha-se dissociado. E sempre que ela estava nesse estado dissociado, as suas memórias não eram registadas e ordenadas adequadamente pelo seu cérebro.
Isso significava que, efetivamente, ela tinha estado psicologicamente ausente durante grande parte da sua infância. Mas isso está longe de ser o fim da história de Joana.
Estados dissociativos podem fazer com que uma pessoa tenha experiências “fora do corpo”
Joana tinha uma perturbação dissociativa com vários efeitos adversos. Uma delas era que ela frequentemente entrava em estados de “fuga”. Na fuga, a mente de uma pessoa é capaz de realizar funções intelectualmente dirigidas, como acordar, ir trabalhar e até mesmo ter conversas – mas a parte do cérebro que experimenta emoções e se lembra de eventos não está a funcionar corretamente.
Foi durante estes períodos de fuga que Joana sentiu como se “se perdesse no tempo”. Numa ocasião, ela acordou no que pensou ser uma terça-feira, mas foi informada por um colega de trabalho que, na verdade, era sexta-feira. Estranhamente, ninguém tinha notado que ela agia de forma diferente nos dias intermediários, quando ela não estava mentalmente presente.
Os longos estados de fuga de Joana foram desencadeados quando o seu cérebro fez associações entre memórias traumáticas e elementos da vida quotidiana. Mas, para muitas pessoas, a fuga não envolve “perder” momentos tão grandes no tempo. Muito mais comum é a demifuga, que envolve um sentimento temporário de separação da realidade, em vez de uma separação total.
Pegando num outro caso, Luísa (nome fictício), que descreve este seu estado de demifuga como o seu “eu voador”. Um dia, numa loja Luísa teve uma discussão com o assistente de caixa, cuja expressão condescendente a lembrou da forma como o seu padrasto olhava para ela quando era criança. A experiência catapultou Luísa para o seu “eu voador”, onde o mundo parecia encolher e tornar-se muito pequeno, quase como se ela estivesse a olhar para as coisas através da extremidade errada de um telescópio.
Imagine um estudante do segundo ano da faculdade que está a regressar a casa dos pais para passar o fim de semana. Tudo parece bem até que o autocarro para. É quando ele começa a sentir-se extremamente cansado e pesado, como se seu corpo de repente pesasse uma tonelada. Durante todo o fim de semana ele sente quase como se não estivesse realmente lá. Isso porque está dissociado – provavelmente como resultado de algum trauma de infância associado à sua casa.
Já deve ter reparado que muitos dos casos dissociativos apresentados até agora foram sobreviventes de traumas de infância.
As crianças são muito mais vulneráveis a traumas do que os adultos
O abuso de crianças está perturbadoramente presente no mundo. Além do abuso direto, muitas crianças também testemunham frequentemente violência física, verbal e emocional. E, numa escala mais global, a tragédia está sempre presente – catástrofes naturais, guerras, epidemias…
É claro que a maioria das crianças terá a sua infância minimamente protegida. Mas, a verdade é que as crianças são altamente vulneráveis a situações assustadoras e, portanto, são muito mais propensas a serem mais traumatizadas, quando comparadas com os adultos. Situações traumáticas são eventos que perturbam ou violam a nossa visão do mundo existente, fazendo com que nos sintamos impotentes e sobrecarregados. E porque as crianças são muito menos experientes do que os adultos, o seu sentido de significado está altamente sujeito à influência de situações emocionalmente avassaladoras.
Imagine uma criança de nove anos chamada Mateus, cujos pais nunca são fisicamente violentos um com o outro, mas frequentemente têm discussões verbais. Numa ocasião, Mateus vê a sua mãe na cozinha depois do pai sair de casa. A mãe está a murmurar palavrões e quando percebe o filho a entrar diz, ainda muito desorganizada – “Olá filho. Queres ver isto?” – abre o armário dos pratos e começa a arremessar pratos contra a parede. A cada prato partido, ela grita “Nojento!” – um discurso dirigido ao marido.
Durante todo o momento, Mateus sente-se oco e entorpecido. No dia seguinte, quase não se lembra. Agora, imagine Mateus como um adulto. Sempre que uma conversa com sua esposa, amigos e colegas o lembra das discussões entre os seus pais – mesmo que a conexão não seja óbvia – Mateus afasta-se. Os seus olhos ficam vidrados e é como se deixasse de estar no espaço. Quando adulto, Mateus dissocia-se porque o seu cérebro foi treinado para o fazer sempre que os seus pais discutiam durante a sua infância. Ele nunca foi diretamente abusado, mas ficou traumatizado com os conflitos entre os pais, que para ele eram totalmente aterrorizantes.
Nos casos mais extremos, o trauma na infância pode resultar em perturbação dissociativa de identidade, a condição anteriormente conhecida como perturbação de personalidade múltipla.
A perturbação dissociativa de identidade geralmente desenvolve-se como um mecanismo de sobrevivência numa criança abusada
Muito do que causa a perturbação dissociativa de identidade é desconhecido. O que sabemos é que a perturbação quase invariavelmente ocorre em crianças abusadas cronicamente como mecanismo de sobrevivência.
Em situações de desesperança, o corpo muitas vezes “desiste” e morre – simplesmente porque não consegue suportar o stress extremo prolongado. Já em 1957, o psicólogo C.P. Richter demonstrou que ratos colocados em situações de desesperança, onde nenhuma resposta de luta ou fuga seria possível, muitas vezes morriam de insuficiência cardíaca.
No entanto, ao contrário dos ratos, os seres humanos são dotados de mecanismos psicológicos que nos permitem lidar com sucesso com o stress extremo. Nos casos mais drásticos, isso pode resultar em perturbações dissociativas de identidade – uma condição em que a mente de uma pessoa é “dividida” entre diferentes identidades, ou “altera”, com memórias separadas e traços de caráter distintos.
Para uma criança abusada cronicamente, dissociar pode permitir uma espécie de “férias mentais”. Cada parte separada pode lidar individualmente com o abuso, compartimentando-o e permitindo que a criança sobreviva. É apenas quando a criança se torna um adulto e escapa das suas circunstâncias abusivas que a sua condição começa a tornar-se problemática. Uma pessoa com perturbação dissociativa de identidade pode levá-la a agir de forma estranha ou inadequada.
Um dos casos mais extremos de perturbação dissociativa de identidade descrita pela psicóloga Martha Stout no seu livro “Myth of Sanitity” foi com um paciente chamado Garrett. Quando Garrett era criança, o seu tio abusivo frequentemente batia-lhe, a si e ao seu irmão mais novo, por ofensas reais ou imaginárias. E sabendo que Garrett era ferozmente protetor do seu irmão, o tio muitas vezes batia no seu irmão por coisas que Garrett tinha feito. Um dia, o impensável aconteceu: o tio de Garrett tornou-se tão violento que pontapeou o seu irmão até a morte enquanto Garrett assistia. O seu irmão tinha apenas seis anos. A vida de Garrett mudou para sempre.
Os abusos repetidos levaram Garrett a desenvolver várias identidades diferentes para compartimentar o abuso que sofreu. Uma das identidades chamava-se James, um rapaz que aparecia quase exclusivamente quando Garrett estava sozinho. Outro era Gordon, uma identidade muito agressiva que surgiu para proteger Garrett quando ele precisava. Havia outros ainda, mas o mais sombrio de todos era Abe, que estava convencido de que tinha sido Garrett quem tinha morto o irmão e que ele merecia morrer por suicídio como castigo.
Nem todos os casos de perturbação dissociativa de identidade envolvem estas relações dramáticas entre as diferentes identidades. Normalmente, as mudanças são mais subtis.
O transtorno dissociativo de identidade pode causar mudanças comportamentais drásticas
Quão bem acha que conhece os seus amigos e familiares mais próximos? Acha que poderia fazer uma lista de traços de personalidade para descrevê-los e ter certeza de que eles seriam precisos?
É possível que esteja a pensar: “Sim, claro que eu poderia!” Mas talvez esteja errado. Isso porque a maioria das pessoas não são apenas observadores objetivos e casuais de outras pessoas – em vez disso, muitas vezes distorcem mentalmente fatos e eventos, de tal forma, que a sua imagem de determinada pessoa permanece consistente ao longo do tempo. Por exemplo, se o seu parceiro parece estar mal-humorado e irritado uma noite, é mais provável que atribua isso a um evento externo do que a integrar o traço de mal-estar no perfil mental dele. E se esse comportamento aparecer regularmente, pode reclassificá-los como mal-humorado. Mas não é muito provável que considere que seu parceiro possa estar a mostrar sinais de uma perturbação dissociativa de identidade – mesmo que isso possa ser exatamente o problema.
Ainda que o diagnóstico desta perturbação, caracterizada por diferentes personalidades nomeadas, possa ser menos vulgar para si. O conhecimento desta perturbação e sintomatologia é ainda pouco robusto na literatura, daí a dificuldade em determinar a sua prevalência na população em geral. Muito mais comuns são os casos que envolvem uma espécie de “troca” por uma pessoa que parece ser aquela que conhecemos, mas que age de formas irreconhecíveis.
Veja-se o caso de Nuno (nome fictício). Na maioria das vezes, Nuno era extraordinariamente jovial, sociável e afetuoso. Ele e a esposa estavam casados há 15 anos e, na opinião da sua esposa, ele era um pai maravilhoso para os dois filhos. No entanto, Nuno ocasionalmente tinha um comportamento estranho. Às vezes, desaparecia por longos períodos de tempo sem aviso ou explicação, independentemente dos compromissos anteriores que tivesse assumido com a família ou amigos. Também tinha a tendência de ter ataques de raiva e de ciúmes pela esposa. Um momento, ele agia como habitualmente – mas, de repente, ficava inconsolável e começava a fazer perguntas incessantes à esposa sobre os seus relacionamentos passados.
Perante estas alterações de Nuno, a sua esposa muitas vezes sentia que não conhecia realmente o marido. Este é um problema totalmente comum para as pessoas que lidam com “interruptores” – muitas vezes sentem que estão a pisar ovos, com medo de desencadear o comportamento mais assustador e alienante da outra pessoa.
Sugestão: Faça perguntas a si mesmo:
Para superar comportamentos dissociativos, é importante fazer perguntas difíceis sobre as experiências traumáticas que teve e fale sobre elas com outras pessoas. Ao fazer isso, começará a “lidar” com estados dissociativos e pesadelos causados por trauma.
Vera Lisa Barroso, Psicoterapeuta na Pessoalmente ®
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